Artigo do leitor: “Prontuário de Meu Pai”

por Carlos Britto // 01 de dezembro de 2018 às 22:01

Meu pai, 79 anos, estava com pressão alta e o levei para a emergência do hospital. Ele foi conduzido para enfermaria e fiquei com o seu celular e a sua carteira. Na doença, não existem posses. Era o seu responsável pela primeira vez na vida. Precisava preencher o prontuário médico. A atendente me alcançou a folha alertando que se tratava de perguntas simples. Peguei a caneta e mordi a tampa, em vez de deslizar a tinta na página.

– Biotipo sanguíneo?

Eu não sabia.

– Alergia a medicação?

Eu não sabia.

– Já teve sarampo, caxumba, catapora?

Eu não sabia.

– Realizou alguma cirurgia?

Eu não sabia.

– Vem usando medicação?

Eu não sabia.

Vi que eu não conhecia o meu pai. Ele que me conhecia de cor e teria facilidade em preencher qualquer ficha a meu respeito.

Mesmo possuindo quatro décadas e meia de oportunidades, o pai surgia como um desconhecido íntimo. Um anônimo. Eu não me esforcei em descobrir quem me cuidava durante todo esse tempo. Nossa relação foi uma via de mão única.

Terminei reprovado no teste de filho. Deixei o teste em branco, para o meu constrangimento. A atendente tentou disfarçar o desconforto: “Depois perguntamos para ele”.

O prontuário médico tornou-se o meu obituário filial. Eu me dei conta de que nunca me preocupei em desvendar quem habitava a função “pai”, em determinar as suas escolhas, em revelar a pessoa atrás da roupagem familiar.

Meu pai veio com uma encomenda pronta quando nasci, e jamais desfiz o embrulho para buscar o que havia dentro. Não desfrutava de condições de responder nada por ele, pois o reconhecia como eterno provedor, uma fortaleza inexpugnável, o qual me socorria em caso de necessidade. Só eu pedia ajuda, não ajudava. Só eu cobrava afeto, não devolvia. Só eu esperava recompensas, não observava também a sua carência e sua fragilidade.

Não questionei o que ele viveu antes de mim. Não sabia se ele teve cachorro, qual o nome, se ele sofreu com a perda do mascote, se sofria castigo na infância, qual o seu melhor amigo, se dançava nas festas da escola ou permanecia encostado na parede, se nadava, se andava de bicicleta, qual a carreira que sonhou, qual o seu pior trauma, qual a sua maior felicidade, se içou pandorga, se pescou, se participou de acampamento, com o que brincava, se jogava futebol, qual a sua posição, se terminava como goleiro por não fazer gol, se dividia o quarto com os irmãos, com qual idade começou a ler e a escrever.

Eu simplesmente me conformei em ser o seu filho, jamais fui seu amigo.

Por Fabrício Carpinejar

Artigo do leitor: “Prontuário de Meu Pai”

  1. Francisco disse:

    Conhecermos nossos pais é também uma forma de os honrarmos. Certamente andamos esquecidos do velho mandamento: honra teu pai e tua mãe para que os teus dias se prolonguem na terra. O texto é uma realidade lamentável. Já não há mais tempo para os pais. Eles foram substituidos pelo zap, face e toda forma de vaidade.

  2. Costa disse:

    Belo texto e uma realidade atual.

  3. GGCastro disse:

    Excelente reflexão

  4. MARCIO araujo disse:

    Muito bom. Verdade que não conhecemos muito sobre quem conhece tão bem de nós mesmos !!

  5. Célio Araújo disse:

    Parabéns pelo texto! É a dura realidade dos nossos dias.

  6. Daniel Sena disse:

    Parabéns, excelente texto.

  7. Paulo Nogueira disse:

    Muito bom. Parabéns pelo texto. Reflexivo.

  8. Joseani Shirlei Rodrigues disse:

    Eu sou a filha mais
    …..aquela que cabe ajudar aos seus irmãos sem ter o direito de reclamar….
    …o meu irmao do meio quando foi para escola pela primeira vez….eu o levei fiquei com ele…tive que asssistir toda aula…
    …minha mae afazeres em casa….
    .
    .engracado…eu tinha tarefa da escola a fazer. …quando fui para escola javsabia ler e escrever….minha mae me ensinou…
    ….nasceu meu outro irmão…pouco tempo nos mudamos…
    …eu tinha dar banho no mais novo…dar mamadeira….
    …eu pergunto …eu….como ficava…
    Simplesmente não existia…..
    …..tinha ajudar….sem excitar…
    O tempo passou…a vida passa….
    Eu sempre viajei…..morei fora….cresci….
    Mas sempre tive uma distância entre eu e minha mãe…..um abismo….coisas das quaisveu gostaria de um dia ter dividido com ela….
    Ela sempre ocupada…demais para prestar atenção…. então…sempre me calei e distanciei..
    Ela ocupada….
    Hoje ..anos apos… anos…. meu pai ja falecido…
    ….meu irmão do meio casado….
    …meu irmão mais novo casado….
    ………eu solteira…..
    ………estou enferma …vou fazer uma cirurgia…
    …..hoje um pouco mais próxima da minha
    Mãe…… e tudo tao diferente….
    ….eu abservo muito…. fico olhando….
    ….um pouco mais atenção minha….la traz..quando ainda menina moça….sera que teria feita diferença. ..não sei dizer….mas hoje esse momento com ela ….e muito importante para mim…..
    …..pode não significar o mesmo para ela ou para os meus irmãos….. ja adulta e voltar a compartilhar com ela esse espaço tempo…
    ….hoje conheço….um pouco a mais minha mãe do ontem…..passado……
    Deus obrigada por gentileza….pode me fazer um favor…..abencoe por tudo….
    …..num silêncio ……. Deus….
    …sou sua filha….misericordia….amem
    .

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