Neste artigo, o jornalista e professor Emanuel Andrade rende uma homenagem ao mestre da Bossa Nova, João Gilberto, ao lembrar de um momento histórico do músico baiano do qual testemunhou no recife.
Boa leitura:
Na primeira metade da década de 90, quando eu era aluno na graduação de Comunicação Social – Jornalismo, pela Universidade Católica de Pernambuco, no Recife, iniciava estágio numa empresa de assessoria de imprensa/marketing, focada no setor privado. Nessa fase, fui e cobri vários shows nos projetos alternativos, inclusive o Seis e Meia (ex-projeto Pixinguinha que levava para teatros artistas de diversas gerações sobretudo grandes nomes da história da MPB, com shows baratos, cujo público maior eram estudantes universitários). Mas certa vez, a empresa em que estagiava organizava a divulgação de um show histórico que aconteceria no mês de maio daquele ano. Foi um clássico no território da industria cultural, unindo música e publicidade, cujos holofotes só acenderiam para um artista que há décadas não andava na terra do frevo: João Gilberto.
Sem que eu imaginasse e nem sonhasse acordado para estar na lista exclusiva de convidados, fui surpreendido com o convite para ver, pela primeira e única vez ao vivo, o ícone da Bossa Nova. Isso mesmo, aquele que há mais de 50 anos sairia da pacata Juazeiro (BA), deixando as águas mansas do rio São Francisco para invadir as ondas das praias cariocas, com a batida única de seu violão. Do Rio de Janeiro, abraçaria o mundo. Logo a ficha me caiu ao saber que iria fazer parte da plateia número 1, para cobrir o show de João, no Teatro Guararapes.
O espetáculo fazia parte de uma ‘pesada’ campanha marqueteira da cervejaria Brahma, que invadia a mídia com o gancho: Brahma Chopp, a Nº 1. Naquele ano, JG era o mais bem pago garoto-propaganda ao levar a batida da bossa para a linguagem persuasiva da publicidade. E ouvíamos na tv e no rádio. Foi um show que mobilizou a capital, rendeu matérias, notas e mais notas nos meios de comunicação, bem antes dos meteoritos das redes sociais. E foi um show sem câmeras fotográficas. Somente a acústica do espaço, o violão do baiano e a respiração do público que lotou o espaço.
Quanto ao viés comercial com direito a várias peças de merchandising, era uma época em que havia guerra declarada entre duas cervejarias que digladiavam no mercado nacional. Era quase uma polarização política acirrada, sem partidos, só sabores. E aí, para aliviar as tensões dos amantes ou não de cerveja, a tranquila maresia das ondas de João foi um bálsamo. Como era esperado, ele não encerrou o show completo. Se não me falha a memória, por causa do ar-condicionado que estava forte a desafinar o violão. E antes do fim, saiu aplaudido de pé pelos admiradores.
Ainda bem que deu para ouvir de mansinho um rosário de clássicos, incluindo: ‘Wave’, ‘O Barquinho’, ‘Chega de Saudade’, ‘Ave Maria no morro’, ‘Desafinado’, ‘Menino do Rio’, ‘O Pato’ e ‘Insensatez’. Longe de qualquer miudeza/grandeza da crítica musical que ainda fervia nos jornais, não importava aspectos falhos. Era João que estava ali, o mesmo que levara sua criação para vários continentes.
Suas interpretações sempre trouxeram a marca do estilo bossa-novista, ou seja, samba-canção, baião, e jazz que de agora em diante vão sempre ter uma releitura marcada no horizonte sonoro da batida de seu violão. Ainda bem que a Bossa Nova existiu em anos difíceis e fervorosos, ao contrário de hoje, em que a música só piora os conflitos socioculturais e de comportamento.
Já que essa história do ídolo cantando em nome de uma cervejaria se passou no Recife, vale lembrar que a primeira vez que João pisou na então Veneza Americana como artista, foi lá na virada da década de 50 para conhecer cantores de frevo mais populares da capital: Claudinor Germano e Expedito Baracho, segundo registrou o crítico José Teles, do Jornal do Commercio. “Era um João sem excentricidades que se tornaram folclóricas. Ele veio ao Recife como vinham todos os cantores de rádio com sucesso nacional. O dele era então ‘Chega de Saudade’, feita em parceria com Tom e Vinícius”.
Com ou sem cerveja, é de se comprovar historicamente que a música sempre subiu e desceu elevadores na plataforma da indústria cultural, aliada à grande mídia. A era de ouro dos cantores do rádio, a Bossa Nova, a Tropicália, a Jovem Guarda também foram fisgadas pela indústria do universo mercadológico. Fora o apelo comercial em cada contexto, o que importa é a grandiosidade da boa música, que ficará para sempre na memória de suas raízes. O show no Guararapes como um ouvinte da plateia Nº 1, levo na memória, além do convite já amarelado em casa como documento histórico e afetivo. Sendo assim, viva a Bossa Nova, que sempre foi manifesto de amor e paz na intimidade dos compositores transferida para os ouvintes. E viva João, que agora no céu/terra figura para sempre no panteão da MPB.
Emanuel Andrade/Jornalista, pesquisador de música da cultura musical brasileira e professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb)