Artigo: A seca que nos persegue

por Carlos Britto // 03 de abril de 2012 às 20:20

O atento leitor do Blog, professor Paulo Robério, está preocupado com a seca que castiga duramente o sertanejo. Ele traça um histórico desse problema que insiste em nos acompanhar por uma vida. O texto é longo, mas vale a leitura.

Leiam:

Caro Britto,

Não é necessário ser médico para saber quando se está doente, assim como não é preciso ser estudioso dos fenômenos climáticos para falar de seca, principalmente quando convivemos de perto com ela. É desse tema, do qual não sou pesquisador nem doutor, mas sofro as suas consequências, que me arrisco a falar com a pequena experiência de quem cria meia dúzia de cabras e ovelhas; que pena e assiste o penar do nordestino, especificamente os da nossa região.

Há séculos essa insuficiência pluviométrica associada a temperaturas elevadas e consequentemente a evaporação dos nossos rios, açudes, barragens e pequenas aguadas vem marcando seriamente a vida dos nordestinos. Mesmo quando há o registro de chuvas no semiárido, essas ocorrem muitas vezes de forma irregular, seja no transcorrer dos anos, das estações, ou ainda numa mesma região – as chamadas chuvas de “manga”.

A primeira grande seca que se tem notícia no Nordeste ocorreu no período de 1580 a 1583 – veja que esse número 3 irá aparecer em vários outros registros, bem como o número 7 – atingindo fortemente o nosso estado tanto no aspecto social como no econômico, uma vez que nesse intervalo os engenhos de cana-de-açúcar não moeram uma vara de cana sequer. Os reservatórios hídricos ficaram esturricados e aproximadamente cinco mil indígenas abandonaram as áreas litorâneas e suas adjacências para buscarem meios de sobrevivência e comida na zona sertaneja, onde habitavam os brancos, seus algozes.

Na seca dos três 7 (1777-1779), quase todo o rebanho bovino do Ceará foi dizimado em virtude da falta d’água e, consequentemente, de pasto. Cem anos depois, na seca de 1877-1879, estudiosos do assunto calculam que pereceram aproximadamente 500.000 pessoas no semiárido brasileiro, de fome, febre, varíola e outras doenças oportunistas, sendo que, só no estado cearense, 200.000 foram vitimadas. Essa tragédia dantesca mereceu destaque na história nordestina por ter sido talvez, a que provocou o maior desastre registrado numa região do Brasil.

O escritor Rodolfo Teófilo, no seu livro “A Fome”, descreveu que nas ruas da capital cearense a peste e a fome matavam mais de 400 por dia, e que durante o tempo em que ficou numa esquina da rua viu passar 20 cadáveres em redes – quem as tinham – ou amarrados de pés e mãos em um comprido pau carregados para a sepultura. As crianças eram ensacadas em sacos de estopas, os quais amarrados a um pau eram também conduzidas para os “sete palmos”.

Um jornal cearense “Gazeta de Notícias”, publicou na sua edição de 13.07.1877 a seguinte notícia: “Morre o povo a fome no Norte, o Imperador diverte-se em Pariz! Não ha um deputado, um senador que tenha a coragem de interpellar esse desgraçado governo, a bem de saber que seus suditos morrem a fome, quando ele banqueteia-se e diverte-se longe d’esse mesmo povo que com o suor lhe paga para bem manter suas prerrogativas e defensa!”

Diante de tão horripilante quadro, eis que surge a promessa do imperador D.Pedro II de vender até a última jóia da Coroa para socorrer os nordestinos, embora nunca tenha vendido um minúsculo diamante para esse fim. Daí também se iniciam as conversas em torno da propalada transposição do rio São Francisco, que até hoje não se concretizou de fato, mas tem servido de mote a muita campanha eleitoral no Nordeste.

O ano de 1915 “brindou” novamente os nordestinos com outra seca inclemente. Famintos e andrajosos percorriam as ruas das cidades sertanejas no exercício da mendicância, invocando a caridade popular de quem ainda tinha algo para doar. Esse fenômeno climático serviu de inspiração à escritora Rachel de Queiroz, que escreveu o romance regionalista de temática social “O Quinze”.

Nesse tempo, nos arredores de Fortaleza, foi implantado um campo de concentração, onde se agruparam aproximadamente 8 mil pessoas, vigiadas por soldados para que não invadissem a capital e engendrassem saques ao comércio. Ainda nesse período, um renomado parlamentar cearense, ao ser entrevistado por um jornal local sobre como estava vivendo a população, assim se expressou: “Pela manhã levantam-se com o sol os bandos esquálidos, e seguem sua diuturna jornada. Os homens vão à procura de trabalho, as mulheres e as crianças arrastando-se pelas charnecas à busca das raízes agrestes. Ora é a “macambira”, uma bromélia, ora a medula do “xiquexique”, um cactus, muito amiláceo, que constituem a sua nutrição.”

No ano de 1932 outra tenebrosa seca devasta toda a região nordestina, chegando até Minas Gerais. Novamente são reativados os campos de concentração no Ceará, desta feita em Senador Pompeu, Ipu, Quixeramobim, Cariús, Crato e Buriti. Dados históricos indicam que algo em torno de 73.000 pessoas foram confinadas nesses campos de concentração, onde as péssimas condições de vida ocasionaram inúmeras mortes. Nas demais áreas do Nordeste a fome dizimava o criatório do sertanejo, atacava adultos e arrebatava crianças. Exemplo disso está nessa estrofe do poema “A Morte de Nanã” do poeta popular Patativa do Assaré:

Na seca de trinta e dois.

Vendo que não tinha inverno,

O meu patrão, um tirano,

Sem temê Deus nem o inferno,

Me dexou no desengano,

Sem nada mais me arranjá.

Teve que se alimentá,

Minha querida Nanã,

No mais penoso martrato,

Comendo caça do mato

E goma de mucunã.

Em 1977 – novamente os sete dobrados – ocorre a grande seca do Século XX. Esta se estendeu até o ano de 1983, sendo considerada a mais prolongada e abrangente seca da história do Nordeste. Por onde passou deixou um rastro de miséria e fome em todos os Estados. Nesse período não houve colheita alguma numa área de quase 1,5 milhão de quilômetros quadrados. Ocorreram saques no comércio quando legiões de trabalhadores famintos invadiram cidades e arrancaram alimentos à força, em feiras-livres ou armazéns.

Dados da Sudene indicam que de 1979 a 1984, 3,5 milhões de nordestinos morreram por causa da fome e doenças originadas da desnutrição, sendo na sua maioria crianças. Nessa época surgem as “frentes de emergência”, que chegaram a empregar aproximadamente 27 milhões de trabalhadores rurais, e os gastos do governo federal atingiram a cifra de 4 trilhões de cruzeiros, embora com todo esse contingente de alistados e recursos astronômicos dispendidos pouca coisa ficou implantada como obra estruturadora que servisse para minorar o sofrimento do povo quando ocorressem novas estiagens.

Aproximadamente dez anos depois, em 1993, outra grande seca atinge todos os Estados do Nordeste e a região norte de Minas. Segundo dados da SUDENE, aproximadamente 2 milhões de trabalhadores rurais que perderam suas lavouras foram alistados nas chamadas “frentes de emergência”. Pernambuco foi o Estado que teve o segundo maior número de agricultores alistados, com 334.765 pessoas. Na época, a imprensa do Recife publicou reportagem segundo a qual dezenas de obras de combate às secas, iniciadas e abandonadas pelo governo federal antes da conclusão, já haviam provocado, entre 1978/1993, prejuízos de CR$ 6,7 trilhões. O escândalo das obras inacabadas deu origem a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, no Congresso Nacional, para apurar responsabilidades.

Retornando às secas, em meados de abril de 1998 o Nordeste sofre novos efeitos climáticos. Os famigerados saques servem de reportagens a muitos jornais de grande circulação. O roubo ou furto famélico se dá em decorrência da total falta de alimentação, obrigando homens honestos, honrados e trabalhadores, apelarem para essa prática, impelidos pela inadiável necessidade de se alimentar e de prover o alimento para os seus.

Devido às constantes matérias jornalísticas e as deprimentes imagens televisivas veiculadas diariamente em horários nobres, foi que o governo federal anunciou um programa de emergência, através do qual passou a distribuir cestas básicas aos flagelados, e como era ano eleitoral, a Igreja Católica chegou a denunciar que nas três esferas governamentais a distribuição dos alimentos estaria obedecendo critérios eleitoreiros e que os governantes não tinham nenhum interesse em resolver o problema das secas no Nordeste porque, com a fome, a compra de votos ficava mais fácil.

Aliado a distribuição de cestas básicas o famigerado, mas necessário carro-pipa – moeda de compra de votos até hoje, em pleno Século XXI – entra em cena como medida de aplacamento dos efeitos da estiagem. Muitos municípios ficaram exclusivamente dependentes dessa modalidade de abastecimento d’água.

Estamos no início de abril de 2012 e até o presente as tão esperadas chuvas ainda não caíram na região, nem se tem previsão de quando elas ocorrerão, se é que vamos tê-las. Algumas poucas áreas do interior do município foram contempladas com chuvas de “manga” este ano, fazendo renascer a esperança dos agricultores que, agarrados aos cabos das enxadas, arados e plantadeiras, semearam milho e feijão nas terras enxombradas, não sem antes subtraírem das suas aposentadorias significativos reais para pagamento de horas de trator, e que a cada fim do dia veem suas esperanças fenecidas, mas ressuscitadas ao amanhecer de um novo dia.

Se não chover logo, com certeza sofreremos as mesmas agruras das secas passadas, talvez não nas mesmas dimensões, quando adultos e inocentes morriam de fome e sede, pois o tempo é outro e as formas e estruturas de convivência com a seca são bem melhores. Mas de uma coisa temos plena certeza: a indústria da seca continuará gerando dividendos eleitoral, assim como no passado, aos políticos que torcem para o time do quanto pior melhor. Afinal, estamos em 2012…

Paulo Robério Rafael Marques/Leitor

Artigo: A seca que nos persegue

  1. joao alves torres disse:

    o artigo é excelente, porém a questão é mais séria do que no passado. Hoje ao aquecimento global é o principal culpado pela seca e sabemos que a situação vai piorar e muito segundo estudos. Temos que deixar de nos enganar e nos preparar para o pior.

  2. Afrânio disse:

    Parabéns professor,excelente artigo. Me lembro da seca
    de 1977. Em Afrânio se queimou muito mandacaru para dar para gado.Se continuar a estiagem, este ano não será diferente, apesar de algumas melhorias implantadas pela Embrapa,Codevasf e Sebrae, como por exemplo: silos de sorgo e milho da safra do ano passado,fenos de capim rio de janeiro e buffel,aguadas, poços artezianos,cataventos e barragens subterraneas.Alguns se prepararam, devido a atividade de gado leiteiro. Outros já começam vender seus animais nas feiras de Afrânio e principalmente na feira de Dormentes.
    O pior é que a PALMA que era a salvação, a COCHONILA DE CARMIM está dizimando toda plantação. É preciso procurar uma solução urgente para esta praga, que já foi um grande produto industrial no México,usado para fabricar corantes e produtos de beleza. No Brasil,possivelmente, a disseminação desta palma com a cochonila de carmim foi feita por Delmiro Gouveia em Alagoas, depois de introduzida na Fazenda Cobra,no municipio de Pedra em Pernambuco. (Domingues,1963).

  3. Francisco Cavalcanti disse:

    Parabéns ao Sr. Paulo Robério pelo excelente e riquíssimo texto.

  4. Dreda disse:

    Excelente texto, muito bem escrito. Felizmente hoje temos muito mais alternativas de convivência com a seca, que é cíclica e esperada, embora não desejada.

  5. Watergate disse:

    Com tanto litoral despovoado, de clima agradavel e chuva constante, o povo insiste por 500 anos na colonização desse buraco de caatinga.
    Tinham que ser descendentes de portugueses mesmo pra serem burros assim! de 3 em 3 anos tudo se perde, gastam-se milhoes pra repor, e do atraso nunca vão sair!

  6. sandro de rajada disse:

    parabens grande homen sertanejo,que foi criado conheçendo os problemas enfrentado pelos nordestinos ,sr paulo roberio sabemos que as chuvas não são os politicos que mandam,mas deveriam pensar um pouquinho nessa tão sofrida população ,cade um progama popular de assistençia a seca (agua)cade os progamas de baragens ,cade as perfurações de poços paara ajudar o homen do campo ,cadê o compromisso com o povo???????? parabens nobre professor !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!um abraço .

  7. Elias disse:

    Ótimo artigo.
    Tenho viajado bastante no sertão e vejo o que jamais pude observar.
    A seca está por todo os lados.
    Tem que haver uma campanha e empenho do Governo para evitar maiores transtornos e sofrimentos.
    Em todos os Estados do nordeste está havendo um grande sofrimento.
    Tenho 30 anos e jamais pude constatar algo parecido.
    O gado está morrendo, as barragens e barreiros estão completamente secos e nada até o momento foi feito.
    Precisamos alertar os grande veículos de comunicação para realizar uma campanha em favor dos nossos irmãos sertanejos.
    Pode contar comigo!

  8. A Minha Família sofreu isso na pele disse:

    Amigo Paulo Robério, Parabéns ! vc foi é um conhecedor nato mesmo sendo um pequenino criador. voce, sabe da importância que é a chuva,para o nosso homem do campo. Minha família teve que ir embora para a Bahia no ano de 1932 devido a grande seca que se estendia em nossa região. Eles moravam alí no Xique xique próximo a Rajada.Meu Bisavô saiu com a esposa e seu doze filhos fugindo do sofrimento da seca indo morar próximo a Barreiras-BA e até hoje aquelas comunidades sofrem sem agua. a adutora passa a 5 KM da Casa da minha Mãe Dalva da Manteiga.

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