A Música Popular Brasileira perdia, há 40 anos, uma de suas figuras mais proeminentes: a cantora Elis Regina. Controversa, desaforada e genial, Elis marcou época na cultura do país, em especial na fase turbulenta dos Anos de Chumbo.
Neste artigo enviado ao Blog, o jornalista, professor e pesquisador Emanuel Andrade relata um pouco da história dessa grande musa.
Boa leitura:
Há exatamente 40 anos, o dia 19 de janeiro caiu numa terça-feira. De férias estudantis, ainda adolescente, estava no Recife. Naquele início de tarde, ainda lembro que enquanto aguardava o almoço, a então apresentadora do Jornal Hoje, Leda Nagle, abria o telejornal com a notícia da morte, aos 36 anos, de uma das maiores cantoras dos país: Elis Regina Carvalho Costa, “a pimentinha”, como batizou Vinícius de Moraes. A cantora que saía muito jovem do Rio Grande do Sul levando na bagagem o sonho de conquistar o Brasil com sua voz, se retirava de cena poucas horas após tomar café da manhã com os três filhos ainda crianças.
Naquele ano de 1982, o país se animava pela seleção na Copa do Mundo, e ainda transpirava na estrada estreita e torta dos Anos de Chumbo sob o comando dos militares que Elis tanto combateu, chamando-os, anos antes, de “gorilas” em entrevista na Europa. Ao voltar teve de se explicar aos generais. Dois anos antes, sua voz invadia as rádios com a canção ‘O bêbado e o equilibrista’ (João Bosco/Aldir Blanc), o hino da anistia que ela abraçou com garras afiadas, engrossando o coro da luta pelo fim da censura ainda vigente e a reabertura política.
Até sua partida, conhecia pouco a trajetória da cantora senão as icônicas interpretações de ‘Arrastão’, ‘Fascinação’, ‘Como nossos pais’, ‘Velha Roupa Colorida’, ‘Alô Alô Marciano’, ‘Aprendendo a Jogar’ e ‘Me deixas Louca’. Passado quatro décadas, o que dizer de Elis? Uma mulher baixinha que se agigantava no palco e sabia separar a artista da dona de casa. Ela pilotava a carreira e o fogão com maestria. Por sua liberdade e dos mais próximos, derrubava muros, labirintos e preconceitos.
A cantora era ilimitada no seu amor pela arte, assim como no lado temperamental de seus relacionamentos. No final da década de 1970, soltou os cachorros numa cadeia pública exigindo acesso à cantora Rita Lee. E olhe que não tinha aproximação com a roqueira, presa por porte de maconha. Elis fez escândalo ameaçando chamar a imprensa em defesa da colega, que estava grávida.
No terreno musical Elis foi plural, versátil e até controversa. Passou pela maresia da Bossa Nova, pelos ícones do samba canção (leia-se Cartola, Adoniram Barbosa, Lupicínio Rodrigues) flertou com o sertanejo de raiz ao fazer o Brasil cantar Romaria (Renato Teixeira). Na rota dos movimentos brigou contra as guitarras, mas bebeu nas canções da Jovem Guarda de Roberto/ Erasmo. Quando tentava a carreira, recém-chegada ao Rio, foi menosprezada por Tom Jobim, mas anos depois deu o troco e dividiu com o autor de Água de Março um dos discos mais elogiados na MPB.
Elis tinha ouvido gigantes e abria portas para o novo. Com sua voz instigante, carimbava o passaporte para aqueles autores que ainda estavam verdes. Assim o fez com Gilberto Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco. Na safra artística do Nordeste dos anos 1970, festejou a chegada de Fagner e Belchior, a quem emprestou seu timbre para as primeiras canções de sucesso dos cearenses. Já na virada dos anos 1980, apostou em Guilherme Arantes, com quem teve um affair e gravou dele um Aprendendo a jogar.
Temperamental e às vezes desbocada, Elis não levada desaforos para casa. Na fumaça dos anos de chumbo, chegou a ser enterrada viva em uma charge do jornal O Pasquim por ter cantado para os militares, evidentemente sob pressão por conta do acerto de contas do caso dos “gorilas”. Engasgada, foi tomar satisfações com o cartunista Henfil, irmão do sociólogo Betinho – aquele que ela cantou esperançosa em O Bêbado e o equilibrista (a volta do irmão de Henfil). O papel político da cantora/cidadã sempre esteve forte em suas opiniões e nas canções. Mas só veio contextualizar em espetáculos clássicos como ‘Falso Brilhante’ e ‘Transversal do Tempo’, dos anos 1970.
E foi justamente no Recife que Elis se jogou sem medo das consequências em um episódio político, envolvendo o arcebispo Dom Helder Câmara e o então estudante universitário Edval Nunes da Silva – o “Cajá”. Elis Regina passava pelo Recife durante a turnê do show Transversal do Tempo, o mais politizado de sua carreira, com viés de resistência e transgressão.
Cajá foi sequestrado em 12 de maio de 1978 sob monitoramento do DOI-CODI. Capturado, foi levado para a sede da Polícia Federal, onde foi torturado e mantido em solitária por 12 meses. A prisão ganhou as páginas dos jornais, resultou em protestos de universitários e provocou ruídos no gabinete do comando militar. Para surpresa dos jornalistas e dos familiares do estudante, um novo desdobramento chegou a desafiar a ira do governo que foi o envolvimento da cantora, já visada pela censura.
Aos desembarcar no Aeroporto dos Guararapes, a cantora manifestou o desejo de conhecer e se encontrar com o arcebispo Dom Helder Câmara. Depois se ofereceu para cantar na via-sacra celebrada na Matriz de São José, no Forte de Cinco Pontas, em favor de Cajá.
Depois da celebração, houve a encenação das estações do martírio de Jesus Cristo, acompanhado de cânticos religiosos, orações e momentos de silêncio dos fiéis.
Elis Regina acompanhou os cânticos da estação do martírio e pouco falou à imprensa. No primeiro dia da apresentação ela dedicou seu show ao estudante preso, que naquele momento poderia estar vivendo momentos de tortura física e psicológica. No segundo, driblou a censura fingindo chamar o baterista da sua banda que estava na plateia para subir ao palco: “Vem cá, já. Não posso começar o espetáculo sem você”. Foi aplaudida de pé pelo público.
Depois de cantar na Via-Sacra promovida pela libertação de Cajá, Elis declarou que queria conhecê-lo pessoalmente. Como o estudante estava detido, encaminhou-lhe uma carta escrita à mão, em um papel timbrado do hotel onde estava hospedada. Combinou de recebê-lo em São Paulo, mas o tempo não permitiu. “Estou rezando por você e confio no futuro e na justiça. Ainda iremos nos encontrar. Muita força e muita paciência, meu irmão”.
Faz 40 anos que a MPB ficou órfã da presença física de Elis. Mas ela segue eternizada na arte disponível em discos, documentários, clipes, filme e biografias. Complexa, erudita, clássica e popular até certo ponto, Elis foi e permanece fundamental na história da música brasileira. Se viva fosse ainda fazia barulho no cenário político.
Emanuel Andrade/Jornalista, professor universitário e pesquisador de música brasileira
Parabéns!!! Bela matéria.