Artigo do leitor: “Garis, os ‘invisíveis’ públicos”

por Carlos Britto // 12 de novembro de 2017 às 21:36

Neste artigo enviado ao Blog, o guarda municipal e professor Antônio Damião Oliveira chama atenção para uma tese de mestrado sobre a importância dos garis para uma cidade, ao mesmo tempo em que esses profissionais são vistos com indiferença pela maioria da população, quase como “‘invisíveis’ públicos”.

Boa leitura:

O ser humano em si quer ser visto, lembrado, notado, reconhecido e, acima de tudo, elogiado. De preferência publicamente, em capa de revista, jornal impresso e canal de televisão. Nas entrelinhas, as pessoas estão em busca de aceitação e querem ser valorizadas naquilo que fazem.

Entretanto, há uma classe de gente que faz um trabalho extraordinário à sociedade, porém ninguém a enxerga, não é cumprimentada e muito menos elogiada. Eles prestam um serviço de grande importância à população, contudo passam despercebidos do grande público. São invisíveis aos olhos de todos. Além disso, não recebem um bom dia, uma boa tarde ou qualquer indicativo de gentileza. Refiro-me aos garis. Essa classe de pessoas só é lembrada quando vemos em nossa porta ou em qualquer ponto da rua o acúmulo de lixo. Aliás, lixos colocados pelos próprios moradores.

Esses profissionais da limpeza executam um trabalho árduo e penoso. Nunca são valorizados em suas funções e tampouco em seus salários.

Este tema em discussão é tão importante e atual que fora defendido em tese de mestrado por Fernando Braga da Costa, psicólogo da USP. Sua pesquisa acadêmica era mostrar que os homens que varrem as ruas da cidade são desprezados e ignorados por uma grande parcela da sociedade. Mas como provar e fundamentar essa argumentação?

Ele mesmo sentiu na pele o que é ser menosprezado perante os próprios colegas de trabalho. Ou seja, submeteu-se a uma rotina do ofício durante oito anos naquela universidade. Em determinado período, fazia o serviço de gari, com luvas, boné, macacão vermelho, e vassoura na mão. Por incrível que pareça, ninguém o reconhecia, simplesmente, porque não olhava para ele. Nas próprias palavras dele, parecia mais um poste, uma parede ou qualquer coisa, e não gente de carne, osso e músculos.

Já em outra situação, sem as indumentárias tradicionais da profissão, no campo da instituição de ensino, pelos corredores, professores o cumprimentavam, o abraçavam, davam tapinhas nas costas, parava para bater um papo e conversava normalmente. Nem de longe percebiam ou sonhavam que o Fernando gari era a mesma pessoa do dia a dia como acadêmico. Quando chegava à casa depois de um dia de jornada, seu coração partia de angústia e tristeza porque sentira a experiência da indiferença de ser tratado como um objeto, e não como um ser humano.

Só sabemos o valor dessas pessoas quando, por alguma ocasião, o lixo não é recolhido, ou quando a empresa que os mesmos são funcionários não recebe o pagamento como prestadora de serviço e paralisam suas atividades. Nessas circunstâncias, os odores horríveis se espalham rapidamente pela cidade, e com um olhar atento, observamos se estão vindos para fazer a limpeza da avenida ou do bairro. Mesmo assim, são desejados e lembrados nessas horas não pela pessoa que são, mas pelo serviço que prestam.

Os garis também se sentem discriminados, e mesmo exercendo uma função social em benefício dos cidadãos, precisam urgentemente de uma inclusão profissional como qualquer curso de cunho universitário.

Hoje está em voga o preconceito racial da pessoa de cor negra. A televisão brasileira tem dado espaço e voz à defesa dos interesses dessa classe de pessoas, que a meu ver, são importantes em todas as instâncias de sua existência. Muitos movimentos lutam pela responsabilidade social; racismo; violência contra a mulher em todas as suas formas; das crianças; intolerância etc. Deveriam também incluir os garis, porque sem eles não teríamos um serviço de limpeza e nem encontraríamos qualquer pessoa para fazer este relevante trabalho em qualquer país do mundo.

Braga destacou em sua tese que os garis são oriundos do Nordeste, negros ou mulatos, mas que muitos deles são brancos também. E um diferencial destacado é que eles sabem discernir os tipos de pessoas de classe social que passam por eles quando estão varrendo às ruas. Ou seja, sabem se o sujeito tem dinheiro ou não. Eles percebem essa diferença com muita facilidade.

Outro fato curioso na pesquisa do mestrando foi eles notarem as relações socioeconômicas do mesmo em relação à deles. “No primeiro dia de trabalho perceberam que eu não era mais um recém-chegado e fui tratado de uma forma completamente diferente. Trataram-me de uma maneira tal que me senti honrado junto a eles. Uma vassoura nova fora reservada a minha pessoa, os serviços que exigiam maiores esforços eu era poupado, até minha área de serviço era um local mais limpinho. Com essa atitude de sensibilidade queriam em todo tempo me proteger. Conclusivamente, foram os oitos anos mais vividos da minha vida e mudaram profundamente meus conceitos como ser humano. Certo dia, no café da manhã, um deles pegou uma latinha do lixo, certamente com bactérias, formigas, baratas e toda espécie de sujeira e a utilizou. E todos os olhares expectantes para saber se o jovem rico que estava entre eles beberia também, e, não livre de algumas sensações desagradáveis, eu bebi. Quando volto para meu mundo real, eu choro, porque esses trabalhadores são tratados piores que animais domésticos, pois estes são chamados por seus nomes com expressões de carinho e, enquanto aqueles são vistos como uma árvore, um orelhão, uma coisa etc”. O psicólogo finaliza seu trabalho acadêmico com as seguintes palavras: “Fui curado da minha doença burguesa”.

Antônio Damião Oliveira da Silva/Guarda Municipal de Petrolina e Professor  

Artigo do leitor: “Garis, os ‘invisíveis’ públicos”

  1. maria das graças ferreira disse:

    Muito bom seu artigo. Parabéns!!!

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