Artigo do leitor: “Guerra de espadas, crime ou cultura?”

por Carlos Britto // 24 de janeiro de 2018 às 20:50

Neste longo, mas interessante artigo, o leitor Elielton Cordeiro da Paixão, mais conhecido em sua profissão por Tenente Cordeiro, levanta uma polêmica acerca da tradicional guerra de espadas no período junino em Senhor do Bonfim, norte da Bahia.

Boa leitura:

Publicado em 1969, Tenda dos Milagres é um romance genial de Jorge Amado, cuja leitura deveria ser obrigatória para todos os baianos. O romance versa sobre a formação do povo baiano, a questão racial e religiosa na Bahia, e, sobretudo, do ódio irracional disseminado às manifestações da cultura negra em nosso Estado. Dentre vários personagens, há um, chamado Dr. Pedrito Gordo, responsável pelo fechamento dos terreiros, pela perseguição às rodas de capoeira, pelo combate aos afoxés (embrião dos blocos carnavalescos), e muitas outras representações culturais afros, vistas à época, pelo poder público, como rituais macabros.

Apesar da perseguição, o romance mostra que as manifestações culturais do povo negro da Bahia se solidificaram, dando vida e identidade aos baianos. Desnecessário seria aludir que tal romance não guarda coincidências com toda a movimentação da Guerra de Espadas na cidade de Senhor do Bonfim em 2017, e nos força a admitir que em pleno Séc. XXI ainda temos manifestações culturais sendo tratadas com tamanha dureza e indelicadeza pelo poder público.

O combate à Guerra de Espadas em Senhor do Bonfim nos coloca dentro do romance de Amado, na mesma ótica de como foram combatidas e entendidas aquelas manifestações culturais, àquela época, tidas como criminosas. É como se estivéssemos vislumbrando as ações de Dr. Pedrito Gordo nas ruas de Bonfim durante o São João passado. Os entes públicos, assim como mostrado no romance, trataram a situação com ultraje e fealdade.

Os anais da História atestarão como uma página triste e vil, o imbróglio da Guerra de Espadas este ano na cidade de Senhor do Bonfim. Não somente pela falta de habilidade como foi tratada a situação no campo das ideias, mas também pelas ações no campo operacional. Vaidades em demasia e inobservância de sensatez pulularam nos dias que antecederam aquele fatídico 23 junho. Foram cenas agonizantes.

De um lado a tradição desejando viver; do outro, uma força sucumbindo às espadas. Nesse cenário irrompiam-se variadas manifestações, enaltecendo a tradição e a cultura popular. Em oposição, ocorria o argumento gélido da legislação e dos protestos silenciosos, favoráveis ao sepultamento de um costume há muito sedimentado em Senhor do Bonfim.

Águas rolaram, e eis que no dia 23, entre interpretações, futilidades e intransigências, a guerra de espadas passou à proibição, e o espetáculo transformou-se em caso de polícia. Hoje nos perguntamos o que será da Guerra de Espadas nos anos vindouros: Se solidificará como manifestação criminosa ou como manifestação cultural? Sobre isso vejamos.

A Guerra de Espadas é um traço de identidade cultural bonfinense. Está para Bonfim, assim como a dança Samba de Latas está para a comunidade Quilombola de Tijuaçu (Distrito bonfinense). Elementos constitutivos da cultura e da identidade de um povo são sagrados, na mesma medida em que promovem orgulho e alegria no seio da comunidade, unindo e gerando sentimento de pertencimento ao lugar.

Nesse aspecto, o povo de Senhor do Bonfim traz na Guerra de Espadas um traço coletivo que une gerações, proporcionando integração e alegria durante as festas juninas. Nenhum argumento será capaz de escamotear a força identitária que a Guerra de Espadas representa para o conjunto das manifestações culturais do São João de Senhor do Bonfim. Extinguir tal verdade seria como retirar “Dom Casmurro” da obra Machadiana. Ficaria um imenso vazio. Findando a Guerra de Espadas, o São João bonfinense ficará mutilado, incompleto.

Não é inteligente sufocar manifestações culturais de um povo. Tal postura nos afasta do ícone do folclore brasileiro, Luís Câmara Cascudo, um dos pais da cultura desta nação, e nos constrange diante da obra de Jorge Amado. É não percebermos que os elementos constitutivos e mantenedores de um povo, ou grupo social são as infindas expressões culturais. Elas servem como o mais poderoso elemento revelador dos traços sociológico e antropológico de uma comunidade. São nos contos, romances, sonetos e textos antigos que as ciências humanas se debruçam para revelar o modo de vida das sociedades passadas, e veem, exatamente nessas manifestações, as verdades mais autênticas, pois sabem que as expressões culturais de um povo são elementos tão fiéis à verdade, como fiel é a agulha de uma bússola ao norte.

Indubitavelmente, a Guerra de Espadas faz parte do ideário junino da cidade de Senhor do Bonfim; é um elemento folclórico e determinante quanto à imagem do povo e da cidade bonfinense. Independente de decisões nas esferas judiciais ou estratégicas da administração pública, a Guerra de Espadas é uma daquelas manifestações que se arraigam à coisa formando uma amálgama. Não se separa sem que execute um ao outro. A espada é elemento simbólico das pessoas e da cidade de Bonfim.

Infindos são os argumentos indicativos de manifestação cultural, no que diz respeito à Guerra de Espadas. Contra esses argumentos se erguem os reclames anônimos, impetrados, via judicial, questionando o costume de soltar espadas pelas ruas bonfinenses. Vejamos alguns.

Um dos argumentos favoráveis à proibição encontra respaldo no Art.16, III, da lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento): “Possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. O outro argumento está nas recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, que tem decidido contrário a alguns “costumes”, a exemplo da prática das vaquejadas e do sacrifício de animais em rituais religiosos (galinha preta, por exemplo). Hoje, tais práticas, após decisões daquela corte, são concebidas como maus tratos. São os costumes sendo questionados, na esfera judicial, resultando na proibição ou criminalização de algumas dessas condutas.

No que diz respeito ao inciso da lei acima referenciada, a espada é enquadrada como “artefato explosivo ou incendiário”, e por isso mesmo, soltar ou portar espadas tem a mesma pena do crime de porte ou posse ilegal de arma de fogo. Eis aí a pedra filosofal dos argumentos proibitivos da Guerra de Espadas. É impactante, eu sei; mas é o que está escrito na lei. As outras alegações apontam para o crime de dano (Art.163 do Código Penal), causado pelo uso das espadas, assim também como os prejuízos causados em decorrência de queimadura nas pessoas durante a queima das espadas.

Ocorre que o Direito é dinâmico e caminha junto às transformações valorativas de uma sociedade, não podendo escravizar, ou tiranizar, com intepretações frias, uma prática que caminha junto ao povo há décadas. Não há que se falar, nos dias atuais, em um Direito Kelsiano, duro e opressor. Entender que o legislador, ao escrever a lei (Art. 16, III, 10.826/2003), se referia à Espada Junina, é um equívoco.

É preciso apelar à Interpretação Restritiva, pois o texto legal possui palavras que ampliam a vontade da lei. “Artefato explosivo ou incendiário” não remonta aos artefatos juninos. Se assim fosse, pequenos fogos, dos mais variados, comercializados no período junino, deveriam, também, ser enquadrados no Estatuto do Desarmamento. Tais artefatos explosivos e incendiários referem-se, na verdade, aos explosivos amplamente utilizados por quadrilhas de criminosos para explodirem agências bancárias, carros fortes, cofres de empresas de segurança etc. O legislador, na verdade, enxerga o uso desses explosivos para a prática criminosas através dos bandos e quadrilhas, e não uma Espada Junina.

Jamais poderia existir, na visão do legislador, uma Espada Junina, com a finalidade da expressão “Artefato explosivo e incendiário”. Entendo como exagerada e descabida tal interpretação. Não esqueçamos que o Direito existe por causa da sociedade, e não o oposto. É como dizia Montesquieu: “Uma coisa não é justa porque é lei; mas deve ser lei porque é justa”. Uma coisa é a lei, outra coisa é a vontade dos operadores da lei. Foi-se o tempo em que a letra da lei exercia tirania. Hoje mais vale um princípio que uma multidão de legislação. Vivemos sob a suprema proteção da dignidade!

Os outros argumentos contrários, fundados nas recentes decisões do STF, carregam muitos fundamentos e são providos de verdades alinhadas com a nova agenda ética da humanidade, a saber, a rechaça aos maus tratos de animais. As tradições e costumes que se alicerçam em maus tratos (vaquejadas e alguns rituais religiosos), terão que se readaptar para permanecerem na legalidade, isto porque os novos tempos impõem transformações. E o que isso tem a ver com a Guerra de Espadas? Nada. O costume/tradição de soltar espadas não diz respeito a maus tratos. É exagerado sustentar as mencionadas decisões do STF, para fazer cessar a Guerra de Espadas. A Vaquejada e a Guerra de Espada são tradicionais. A primeira incorre em maus tratos, a segunda não. Definitivamente a tradição de soltar espadas não é alcançada pelas decisões da Suprema Corte.

Ademais, e já iniciando a conclusão, chamo a atenção para o poderoso livreto de Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, quando encontra o Homem Vaidoso em um determinado planeta (Cap. XI). “Os vaidosos só ouvem elogios e não se importam com a opinião do outro; pensam que os outros homens são sempre admiradores”. Exupéry deixa evidente que homens vaidosos representam uma cilada para qualquer instituição, e por extensão à sociedade. O Principezinho foi embora daquele planeta chamando o Homem Vaidoso de bizarro. O fim desastroso que tomou a Guerra de Espadas este ano se deve e muito à vaidade ululante em algumas pessoas. Que este ano essa questão seja analisada com entendimento, e não como cabo-de-guerra, e com homens e mulheres humildes. Quiçá com outros atores, desprovidos de vaidades ilusórias e perniciosas.

Concluo observando que a Guerra de Espadas é elemento simbólico e cultural dos festejos juninos da cidade de Senhor do Bonfim. Já está incorporado à imagem representativa da festa, do povo e da cidade. Agir como Dr.Pedrito Gordo (personagem de Jorge Amado) nos tornam pessoas intransigentes e insensíveis com as manifestações culturais do povo bonfinense. Sei que os argumentos contrários ao ato de soltar espadas não podem ser ignorados; todavia, existindo a favorável interpretação da lei, somado à disponibilização de um local apropriado para a guerra, e sanadas as vaidades, podemos continuar com show de espadas nos festejos juninos! Que os homens e mulheres de boa vontade da “Terra do Bom Começo” sanem este impasse e mantenham a tradição como cultura, e jamais como crime.

Elielton Cordeiro da Paixão/Bacharel em Segurança Pública (APM-BA) e Licenciado em História – UPE

(Foto/reprodução internet)

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