O jornalista, professor universitário e pesquisador de música brasileira, Emanuel Andrade, lembra neste artigo o momento em que o cantor e compositor Luiz Melodia – falecido na última sexta-feira (4), em decorrência de um câncer – se apresentou no Centro de Cultura João Gilberto, em Juazeiro (BA). Ele destaca ainda a preocupação do músico com o Rio São Francisco e enaltece a importância de Melodia para a MPB.
Boa leitura:
Não só se fala de música quem entende do assunto. Mas se fala quem gosta, não importa o gênero. Qualquer ser humano sentimental que goste de música ou qualquer outra expressão artística deve falar, escrever, comentar, elogiar ou criticar se preciso for. O poeta João Cabral de Melo Neto, autor do clássico Morte e Vida Severina, detestava música, qualquer tipo de música. Mas sua poesia era bem musical, tanto que alguns de seus versos foram musicados. Então vamos falar de músicos e compositores que alimentam nosso cancioneiro. Infelizmente, estamos em baixa neste 2017, com a perda em menos de um ano, do cearense Belchior, e agora, na fatídica última sexta-feira perdemos o carioca Luiz Melodia, o ébano da MPB.
Nascido e criado no morro do Estádio, onde bebeu na fonte do samba, Melodia militava no campo, independente dos esquemas típico de propina, batizada de “jabá”. E de um mercado prostituído para aqueles que sempre fizeram o ouro da boa música brasileira. Luiz Melodia desceu do morro, ganhou o asfalto, a terra batida, o mar, os sertões de um país gigante, que nunca reconhece como devia os gigantes da MPB.
No horizonte de suas andanças pelo Brasil, a última vez que vi Luiz Melodia ao vivo e em carne e osso, sob holofotes de um luar sertanejo e com a boca no microfone mandando suas pérolas, foi no espaço aberto do Centro de Cultura João Gilberto, em Juazeiro. Após o show, no camarim, de camisa branca encharcada de suor, Melodia sorria à beça após um goles de cerveja. “Olá Melô”, como o chamei, não foi legal. Respondeu de pronto: Melodia. Claro, Melô soa brega e de gosto duvidoso, vem lá dos anos 80, dos rebolados de Gretchen, com o Melô do Piripipi.
Mas Luiz é Melodia no melhor sentido, um cara que aprendeu samba com bambas na raiz carioca. Ao falar sobre a região, Melodia disse que o calor arrebentava naquele verão e era igual à temperatura carioca, sem cheiro de mar. “Mas tem cheiro de Rio São Francisco, um rio magnífico, brasileiro e bem cantado. Pena que estão maltratando o Velho Chico, o homem tem que cuidar mais dessa beleza”, defendeu. “Aqui é uma loucura esse calor, mas num país tropical desse, tudo que vier quente vem fervendo, o resto a gente tira de letra”, ressaltou.
Melodia estava a fim de ficar sozinho, com duas jovens morenas que se encontravam no camarim, e tomar seu goles. Ademais, já tinha feito seu miscigenado show desfiando um rosário de canções que o Brasil já cantava desde os anos 70: Pérola Negra, Vale quanto Pesa, Negro Gato, Juventude Transviada, Salve linda canção sem esperança, Congênito – entre tantas outras composições, sem deixar de lembrar sua versão para Codinome Beija-Flor, de Cazuza.
Lá nos anos 80, quando morava no Recife, costumava ir ao Teatro do Parque ver os shows baratinhos para estudantes “lisos”. Era o projeto Seis & Meia, onde vi muita gente da nata da MPB. Lembro que Melodia pintou por lá umas duas vezes, com teatro lotado de jovens ávidos por boa música.
No palco era bem performático: Fazia acrobacias com o corpo, com as pernas, com o corpo tateando feito cobra. Fazia caras e bocas e arregalava os olhos gigantes em frente ao público, puxando a barba exótica. Melodia temperou seu estilo poético e musical com pitadas de samba-canção, blues, folk, rock, baladas, reggae entre outros ritmos.
Lá nos idos cinzentos da censura que travou o Brasil por mais de 20 anos, Luiz Carlos dos Santos (nome de batismo) abriu portas para alimentar o repertório de discos de cantoras como Gal Costa e Maria Bethânia que gravaram, respectivamente, clássicos como Pérola Negra e Estádio, Holly Estácio. Anos depois Gal arrebentava com Juventude Transviada (“Lava roupa todo dia, que agonia…”), no show Gal Tropical.
Melodia tinha uma maneira exótica de compor até sobre a morte, que de tão apressada o tirou de cena. No seu disco Pérola Negra, carimbou: “Sou peroba/Sou a febre/Quem sou eu/Sou um morto que viveu/Corpo humano que venceu/Ninguém morreu”.
Digamos que ele partiu para o andar de cima na camada celestial, de onde continuará emitindo as vibrações sonoras através do rádio, TV, no som do carro, no carro de som comercial, no celular, no passa disco de vinil, no computador, seja onde for. Onde houver sensibilidade de fãs para compreender as suas maravilhas contemporâneas, seus farrapos humanos, suas dores de amor, suas magrelinhas, suas fadas e seu modo de interceder com o congênito, quando diz: “Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais”.
Por tudo isso, vamos falar menos, tentar viver mais e ouvir as belas canções que nos encantam. Vamos falar menos e ouvir as melodias de Melodia.
Emanuel Andrade/Professor universitário, jornalista, pesquisador de música brasileira