Artigo do leitor: “No Sertão, o carnaval unifica as metrópoles da folia”

por Carlos Britto // 03 de março de 2019 às 21:32

Foto: divulgação

Maior festa popular do planeta, o Carnaval é verdadeiramente uma orgia de ritmos e de alegria, seja no Sertão ou em qualquer parte onde aconteça. Essa é a visão do jornalista e professor Emanuel Andrade, neste artigo enviado ao Blog.

Boa leitura:

Já é carnaval e não importa de que ano. O calendário  permitiu que alegria devasse não só a espera,  mas a tristeza e ilusão dos foliões que esperam o ano inteiro pela energia inexplicável da festa popular para sair descambando pelas ruas e avenidas da folia. São mais de 300 dias de espera. O que menos se deseja é que a quarta-feira ingrata chegue tão logo. Basta que o Rei Momo abra as portas do horizonte, colorindo  os quatro cantos, abençoando a temperatura efervescente que corre nas veias de quem gosta de se esbaldar na festa mais popular do planeta.

O que dizer da folia no Sertão? É multicultural com todas suas vibes. Não importa a idade, porque todas as gerações, raças e gêneros se amalgamam aos dobrados das orquestras. Todas as tribos quebram as porteiras de suas aldeias, unificando um outro continente em cores, confetes e serpentinas.

É aí que renasce um só país: o país do carnaval, do Oiapoque ao Chuí, com alegria coletiva a explodir os termômetros, do litoral ao Sertão. De Salgueiro a Petrolina, de Belém do São Francisco a Triunfo, no mapa pernambucano, milhares de foliões, quase todos passistas na escola livre da festa, puxam seus blocos de lado a lado, com ou sem sombrinhas coloridas.

E não adianta disputas. A alegria não quer troféus, quer mesmo é se esbaldar no mar da euforia. Nem adianta confrontar os  gostos musicais, porque em tempos modernos tudo se mistura: o frevo rasgado que vem do Recife, o frevo eletrizado que vem da Bahia, o axé, o maracatu, o caboclinho, o galope, a lambada, o samba com todas suas vertentes, o pagode, e até o brega tecno-pop  dançante que vem do Pará.

Em algum lugar, alguém estará cantando Capiba, Pixinguinha, Noel Rosa, Lamartine Babo, Chiquinha Gonzaga, Zé Keti, Antônio Maria, Nelson Ferreira, João Nogueira, Nelson  Cavaquinho, Ivone Lara, Paulinho da Viola, Alceu Valença, Gerado Azevedo, Moraes Moreira, Caetano Veloso (que efetivou a máxima de que atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu), a energia do trio de Armadinho, Dodô e Osmar, o Chiclete com Banana e os batuques bombásticos do Olodum, entre os sons embalados pelas novas gerações.

Ah, não esquecer jamais do projeto Asas da América, sob a batuta do caruaruense Carlos Fernando, que lá nos anos 80 reuniu uma constelação de estrelas da chamada MPB. Ainda há quem o recorde no sertão, pois são discos ainda bem atuais para quem aprecia o bom frevo matemático das orquestras. 

E nessa salada de notas e ritmos, por que não marcar o passo com passistas do frevo, não reverenciar a beleza exótica dos maracatus rurais? Contorcer o corpo aos solos exuberantes das pequenas e eletrizantes guitarras de Armadinho ou bravejar com as letras simples da axé-music, que também demarca terreno. Ora, carnaval é tudo junto e misturado, como se diz, portanto, cada folião se esbalda sem contar o tempo, pois, como dizia Vinícius de Moraes, “tristeza não tem fim, felicidade, sim”. A felicidade equilibrada ao longo dos  quatro ou cinco dias de folia vale por 365 dias do ano.

E com que roupa eu vou, você vai, eles vão? Não importa. O espírito precisa ficar nu para o calor das ruas. Mas o corpo paramentado é nobre ao ecletismo da fantasia. Uma camisa pintada, um macacão, um ou mais adereços e até a fantasia coletiva dos blocos. Tudo alimenta o cenário humano da alegria.  No reinado de Momo – onde e quando – somos protagonistas,  a alegria não precisa de diretor.

Vestidos de palhaços, colombinas, arlequins, bichos estranhos, super-heróis, artistas famosos,  médicos, ladrões (digo, os Metralhas), insetos, aves, demônios do bem com dentes, sem dentes, sangrando, anestesiados, esparramados nas cores vivas de uma festa apoteótica tudo vale. Há até as caras da moda – artistas ou políticos – que no último ano deixou alguma marca para além de seu papel.

E abriremos alas para os corços que invadem as ruas e avenidas sertanejas, seja em calhambeques improvisados, fuscas sem teto, caminhonetes  ou a pé –  o que é fantástico -, atrás de uma orquestra de frevo. O mela-mela também se configura a imensurável festança, seja de graxa, pós de arroz, batom, carvão, tintas, maizena e o brilho multicolorido do glitter que domina a moda das novas gerações.

Quem vai a Salgueiro, ali no coração do Sertão Central, se esbalda atrás da Bicharada do Mestre Jaime com seus bonecos  e máscaras artesanais em cena há mais de 60 anos. Em Belém do São Francisco, vale pular junto aos bonecos gigantes tão irreverentes quanto os de Olinda. Nos quatro cantos do Sertão a alegria não é desértica no carnaval, embora há quem pense nos grandes centros. O mesmo sertão traduz um pouco das raízes dos carnavais clássicos de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro.

O povo sertanejo, a cada ano, abre alas para grande parte dos artistas que saem das capitais para fazer a folia no Interior. E no  Sertão também se faz paródias: não há quem não esbraveje quando a terça feira-feira anuncia a aurora com seus raios de sol da reta final: “Quem é de fato um folião no Sertão espera o ano e se mete na brincadeira, esquece tudo quando cai na folia e no melhor da festa chega a quarta-feira”. Saravá, a folia de hoje, e a do ano que vem. É festa, é festa do povo!

Emanuel Andrade/Jornalista, Professor da Uneb, Escritor e Pesquisador de Música Popular Brasileira

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