Artigo do leitor: O centenário de nascimento de uma grande dama

por Carlos Britto // 18 de fevereiro de 2023 às 17:30

Foto: arquivo/reprodução

Exatamente há 100 anos, em 18 de fevereiro, nascia em Ouricuri (PE), Sertão do Araripe, um dos nomes que mais marcaram a cultura de Petrolina. A artesã Ana Leopoldina dos Santos, ou simplesmente Ana das Carrancas, é enaltecida neste artigo do jornalista, professor universitário e pesquisador Emanuel Andrade.

Confiram:

A nobreza da arte e o centenário de Ana das Carrancas, a Dama do Barro

Dezoito de fevereiro de 2023. Uma  data especial para a história do artesanato de Pernambuco. Um capítulo gigante e nobre  da vida real, da vida de lutas e glórias de Ana Leopoldina dos Santos. Para Petrolina, Pernambuco e Brasil, Ana das Carrancas. É chegado o centenário da mulher icônica no horizonte da arte popular. É falar aqui da mulher artesã e sobre a trajetória de uma  sertaneja, negra, guerreira e abençoada pela imensidão de sua fé. Ana batizada como artesã pelas águas mansas e perenes do Velho Chico. Ana devota de Nossa Senhora, e claro, de São Francisco.

Ana, que bebeu da água do rio Velho Chico pela primeira vez ao lado do marido José Vicente – aquele homem que completava suas forças na arte de fazer carrancas para o mundo. Aquele homem que, cego de nascença, falava, cantava e ajuda a moldar suas peças com o tato das mãos e pés. O  coração falava por tudo e por amor sem tamanho, tipo aquele amor maior do mundo.

Mas e o que dizer tanto da menina Ana ou Aninha, para os pais e irmãos, que certo dia, numa seca braba, fugiram da região do Araripe para o Piauí com a missão de escapar da escassez de água e comida.  E depois de léguas andadas sob sol a pino, aportam no também árido Piauí. E aí começa toda uma saga. Experiências em feiras populares vendendo utensílios domésticos de barro, por algum tempo. Tempo depois, resolveram migrar para Petrolina. E lá, no cenário e elenco familiar, esta Ana já mulher.  Negra, humilde, sem grandes estudos. Ana Leopoldina, a cidadã  que fez da arte sua universidade. A mãe que criou as filhas com seu brilhante fazer artístico.

Ana das Carrancas foi catedrática no maior sentido de lidar com a fama e com seu trabalho, que já percorreu parte do Brasil e exterior, sem ao menos saber ou dar margem para esse negócio de holofotes.

Ana, que foi debatida nas escolas, que foi tema de artigos e dissertações em universidade. E tudo isso por causa de sua arte ímpar, ora plural. Suas carrancas expostas em tantas feiras de arte como a anual e internacional Fennearte (no Recife), que até hoje lhe garante espaço de destaque pelas mãos das filhas Ângela Lima e Maria da Cruz, artistas que  dão continuidade com maestria ao legado da matriarca, inclusive com novas linguagens, sem deixar escapar os traços das tradicionais carrancas de barro. Aliás, carrancas que já foram ovacionadas no suntuoso ateliê de Brennand.

Sem esconder a versatilidade e inspiração que dominava com maestria quando espalhava o barro nas mãos, lembrou que apenas sob encomenda fazia peças diferentes. Católica fervorosa como ela sempre foi, certa vez moldou duas imagens de Jesus Cristo. Lembrou que foi a primeira e única vez que fez uma arte sacra e chorou quando viu aquela “coisa linda” de Deus.

E o que dizer de sua paixão fulminante, tipo amor à primeira vista por Zé Vicente. Seu marido, companheiro, amigo e confidente. “Não tem explicação, foi coisa de Deus quando mandou ele pra entrar na minha vida. Um salvou o outro”, disse, certa vez, em uma entrevista para um jornal. Ana das Carrancas não economizava bons adjetivos para falar da dedicação que o companheiro lhe tinha na vida e na arte, e com quem sempre conversava sobre todas as coisas, de casa e do mundo.

A ceramista não dourava sua fama. Nunca deu bolas para coisa de celebridade na arte. Recebia em seu espaço – Centro de Arte – estudantes, turistas, pesquisadores e autoridades políticas, além de visitas ilustres da arte. Até aí seu  nome já estava consolidado para além da imprensa e catálogos de arte. Com o passar dos anos, seu nome foi abrindo novos caminhos e conquistas, e não parou mais. Foi contemplada com o título de Cidadã de Petrolina décadas depois, Patrimônio vivo de Pernambuco e chegou a Brasília para receber a comenda de Ordem ao Mérito Cultural ao lado de um grande elenco de artistas de diversas linguagens. Emocionada, não escondeu o choro. Ana já teve sua vida contada no perfil biográfico A Dama do Barro. A relação de amor e arte com o marido povoa as páginas digitais  de um Ebook infanto juvenil, “O amor e a Arte de Ana e José”. Cada homenagem é pouco, mas valoriza e eterniza a imensidão da obra artística dela.

Ana das Carrancas, ex-louceira que virou arte de grife, partiu para a eternidade em 2008 por conta de consecutivos problemas de saúde.  José Vicente da mesma forma, em 2014. Os dois já se encontraram na eternidade. E o casal eternizou sua trajetória pelas quatro mãos de afeto e arte. De dois seres humanos iluminados. Pelo amor e fé que deram frutos que se multiplicam na grandeza dos olhos expressivos de Ana. E os olhos do coração de José. Já que chegamos a 18 de fevereiro de 2023, é chegado o momento de festejar o centenário de nascimento de Ana das Carrancas.

E digo que há várias formas de festejar: Uma delas é jamais esquecer seu nome e  sua arte navegando para além do São Francisco. Ana/José têm os nomes carimbados em música, poesia e crônica. Até em novela das 9h suas carrancas brilharam em parte do cenário. E assim a história prossegue.  Viva Ana, Viva José Vicente!

Emanuel Andrade/Jornalista, professor universitário e pesquisador, autor do livro A Dama do Barro

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Últimos Comentários