Artigo do leitor: “O Cine Teatro Petrolina”

por Carlos Britto // 09 de fevereiro de 2020 às 21:35

O leitor Flávio Cabral remete, neste artigo um tempo emblemático de Petrolina que ficou eternamente marcado na história da cidade. Confiram:

Quando eu me entendi por gente, o Cine Teatro Petrolina já existia há muito tempo. Segundo os mais antigos, desde a década de 1940. Lá eu assisti ao primeiro filme da minha vida: “RASTROS DE ÓDIO”, um faroeste com John Wayne.

Naquele tempo, o melhor programa dominical era o matinê do Cine Petrolina. Geralmente os filmes eram de faroeste. Além de assistir aos filmes, o programa incluía a troca de gibi e comer o delicioso queimado de tamarindo de Regina. Aliás, as histórias de Regina e de Raimundo se confundem com a história do Cine Petrolina.

Apesar de sua aparência máscula, que provocava temor nas pessoas, Regina tratava a todos muito bem, principalmente os jovens. Algumas vezes era cúmplice de estudantes que fugiam das aulas pra ir namorar no cinema. Era  zeladora e vigia, sabia tudo sobre o prédio do cinema. Tinha uma banca de bombons, onde também vendia o queimado de tamarindo e rolete de cana.

Raimundo Sá Gonzaga, conhecido como Raimundo Belo ou Raimundo do Cinema, era o gerente. Gerente só, não. Era um faz tudo: fazia as projeções, cuidava da administração e das finanças,  supervisionava a bilheteria e a portaria e, com muita criatividade, preparava  os cartazes dos filmes, que eram distribuídos em pontos estratégicos da cidade. Quando saíamos do Dom Bosco por volta das 11h, frequentemente passávamos na esquina da loja de Waldemar Costa para ver o cartaz do filme do dia. Às vezes, Raimundo exagerava no apelo publicitário: “perder esse filme é mesmo que ir a Roma e não ver o Papa”.

No Cine Petrolina também assisti ao meu  primeiro filme impróprio para menores de 18 anos: “UMA VEZ ANTES QUE EU MORRA” com Úrsula Andress e John Derek. A história do filme se passa durante a 2ª Guerra Mundial, quando um pelotão comandado pelo jovem Tenente Balley (John Derek) tenta retornar a Manila. Na viagem, Alex (Ursula Andress), a noiva de Balley, conversa com um tímido soldado de 19 anos, que revela seu temor de morrer e admite que nunca esteve com uma mulher antes. Ele diz a ela que gostaria de fazer sexo pelo menos “uma vez antes que morra”.

Para assistir aos filmes “impróprios” tínhamos que comprovar nossa maioridade. Os comissários de menores eram muito rigorosos, principalmente Antônio Araújo, conhecido por Antônio Furão, pai do estilista Antônio Filho; e Abel, marido de Nilza, que era vizinho de José Maniçoba e Chico Barbeiro.

Além da exibição de filmes, o Cine Petrolina também era palco para apresentação de cantores famosos. Lembro-me bem dos shows de Waldik Soriano, Nelson Ned, Lindomar Castilho, Jerry Adriani e Renato e seus Blue Caps.

Mas o Cine Petrolina, apesar dos esforços dos seus empregados, funcionava precariamente. Já havia sido encaminhado ao seu proprietário vários pleitos solicitando a melhoria das condições daquela casa de espetáculos.

Surgiu, ninguém sabe de onde, a notícia de que o dono  havia dito que “o cinema estava à altura do povo de Petrolina”. Foi a gota d’agua.

Como vivíamos tempos de rebeldia, os estudante se reuniram e  resolveram quebrar literalmente o Cine Teatro Petrolina.

Numa noite, um grupo de alunos que formava o coral do Colégio Dom Bosco estava ensaiando no salão Nobre do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, sob a regência de Padre Reginaldo. Estávamos em plena quaresma e  preparávamos os cânticos para as “funções” da Semana Santa.

Natural de Ouricuri (PE), Padre Reginaldo Lins de Aquino veio se incorporar ao clero da Diocese de Petrolina em pleno regime militar. Era um padre diferente: tinha cabelos longos, usava roupas modernas, calçava alpargatas ou botinha de couro, andava de lambreta e, nas suas homilias, falava abertamente em favor dos pobres e oprimidos. Pela sua maneira de ser, com pouco tempo conquistou a simpatia dos jovens petrolinenses. No Colégio Dom Bosco foi professor de Religião e OSPB – Organização Social e Política do Brasil, vindo a ocupar posteriormente a direção em substituição a professora Yeda Nogueira.

Quando saíamos do Auxiliadora após o ensaio, notamos um movimento desusado em frente ao Cine Teatro Petrolina. Era a manifestação dos estudantes. Imediatamente nos dirigimos a Praça 7 de Setembro, mais conhecida como praça do cinema. Rapidamente formou-se uma  multidão com  alunos do Estadual, EMAAF e Dom Bosco. Ficamos algum tempo parados, como se aguardássemos uma ordem para iniciar a depredação.

O quebra-quebra só começou quando um estudante, num gesto solitário, se dirigiu  ao cartaz que ficava ao lado da entrada do cinema e o destruiu totalmente. Ato contínuo,  houve a invasão ao cinema. Cadeiras foram quebradas, portas laterais arrancadas, cortinas rasgadas. Uma cena de guerra.

Naquela época ainda não tinha sido instalado o Batalhão da Polícia Militar e o efetivo policial de Petrolina era reduzidíssimo. Chegaram 2 policiais militares na Pick Up  Willys, placa 1047, única viatura policial da cidade. A essa altura o número de estudantes passava de 100. Como eles não  puderam conter a turba, prenderam João Evangelista da Gama,  que estava mais próximo. O pessoal tentou resgatar o preso. Imediatamente os policiais sacaram suas armas e os estudantes recuaram.

João Piranjinha, como afetivamente chamávamos nosso colega, ficou bem quietinho, sentado na carroceria da 1047. Eis que do meio da multidão surge a figura do Padre Reginaldo, que tinha nos acompanhado desde a saída do Colégio  Auxiliadora. Houve um silêncio sepulcral. Todos os olhares convergiram para aquela cena. Calmamente, aquele padre moderno e cabeludo se dirigiu aos policiais e, usando o argumento de que aquele estudante não podia pagar por todos, estendeu-lhe a mão e o retirou da viatura. A multidão foi ao delírio! João foi carregado nos braços, recebendo o tratamento de herói.

Pouco tempo depois o proprietário do cinema chegou abruptamente, fazendo disparos para o alto. O povo começou a se dispersar. Pra mim, esse quebra-quebra foi um ato emblemático para demonstrar a insatisfação de um determinado público com um equipamento comunitário que estava muito aquém de uma Petrolina que começava tomar ares de metrópole.

Ficamos muitos meses sem cinema. Depois ele voltou a funcionar, já equipado com ar refrigerado e exibindo, na maioria das vezes, pornochanchadas nacionais. O Cine Teatro Petrolina atualmente é a sede da Igreja Universal do Reino de Deus. Como hoje é uma casa de orações, acho que todos os pecados cometidos naquele recinto já estão perdoados.

Flávio Cabral/Leitor

Artigo do leitor: “O Cine Teatro Petrolina”

  1. Bingo disse:

    Belas lembranças, essa narrativa de Flávio Tesourinha, é história pura!

  2. Carlos Laerte disse:

    Contar, dizer como foi, escrever e narrar com precisão e elegância o ocorrido. Flávio é parte e conteúdo imprescindível para saber Petrolina. É gosto e é simplicidade de quem viveu e como viveu para contar.

  3. Francesco disse:

    Flávio Cabral, já pensou em escrever um livro com essa história e outras sobre Petrolina? Com essa memória que você tem daria um belo livro!

  4. Franamorim disse:

    Belissima narração, amo ler/ouvir essas histórias👏👏👏👏 apesar do pouco contato, admiro demais Dr Flávio Cabral!

  5. Fernando Lima disse:

    Eu estava no dia do Show de Lindomar Castilho e ainda lembro de uma mulher que chorava ao lado do namorado. É bom lembrar também do Cine Massangano com apresentação do Glorioso Isac Cego como era mais conhecido nas manhãs de Domingo.
    Fernando Lima

  6. Wellington freire de souza disse:

    faltou ai falar de seu Ariston, que ficava na portaria do cinema. e não tinha só o cine Petrolina pois havia também o cine massagano e aos domingos de manhã tinha o domingo de atrações com o grande ze Maria silva. e é provido verdade tinhabas trocas do famosos livros de bolso, ah tempo bom

  7. Marcelo Ferraz disse:

    Fantástico. Viajei no tempo. Que essas histórias não se apaguem.

  8. Luiz Dias Ferreira disse:

    Oi, Flavio. Não conhecia o fato que voce relatou. Mas o CINE PETROLINA realmente fez parte da história de nossa geração. Pessoalmente adorava os filmes de Tarzan e os dos geniais Chaplin e CANTINFLAS (esse, hoje lembrado por poucos) e os de nossos, não menos talentosos, Oscarito, Grande Otelo e o inesquecivel JECA Mazzaropi. Não me lembro de ter assistido UMA VEZ ANTES QUE EU MORRA. E se assistir não me marcou profundamente. Embora URSULA ANDRESS fosse um “colirio” e uma inspiração para nossos “pecados”. Mas nessa temática (paixão juvenil não correspondida ou impossivel) o classico dos classicos é SUMMER OF 42, que no Brasil recebeu o título de HOUVE UMA VEZ UM VERÃO.

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