Artigo do leitor: “Por novos médicos no Vale do São Francisco para ajudar no combate à pandemia”

por Carlos Britto // 23 de junho de 2021 às 11:00

Neste artigo enviado ao Blog, o médico cardiologista e professor adjunto da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Anderson Armstrong, mostra-se contrário às aulas remotas para o curso de Medicina. Embora respeite quem pensa diferente e considere a Covid-19 “ uma pandemia sem precedentes”, Armstrong acredita que travar cursos de saúde não parece a melhor estratégia para proteger os futuros profissionais.

Confiram:

A primeira vez em que entrei em uma UTI COVID para assistir um paciente com quadro respiratório grave pelo novo coronavírus foi uma experiência única. A despeito dos anos de profissão, um misto de excitação, medo e senso de dever pareciam se sobrepor à máscara N95 querendo sufocar minha respiração. Eu atendi o paciente, avaliei o eletrocardiograma, fiz o ecocardiograma e discuti com a equipe do plantão sobre possibilidades de conduta. Terminei, passei pelo flagelo da desparamentação dos equipamentos de proteção individual (os tão falados EPI), tomei um banho no banheiro do Hospital Universitário e segui o meu dia. Parecia mais um momento da minha vida de cardiologista, como milhares de vezes ao longo da minha vida profissional. Mas não era mais um dia ordinário, e eu sabia disso. Nos meses seguintes centenas de milhares de pessoas morreram em consequência da COVID-19, incluindo amigos médicos e pacientes queridos.

Dias antes do primeiro caso de COVID-19 por aqui, quando a chegada do novo coronavírus no Vale do São Francisco ainda era uma ameaça iminente, eu havia reunido meus dois filhos adolescentes para mais uma de nossas conversas. Dessa vez, conversamos sobre a pandemia, o que eu sabia, o que eu não sabia, os medos, as ansiedades e as obrigações. Não havia uma sombra de dúvida de que meu papel como médico era o de participar do combate ao COVID, nas trincheiras em que eu pudesse ser mais útil, e isso também estava claro aos meus filhos. Estávamos todos assustados, mas não havia outra opção no meu papel de médico. Desde então, tenho tido a missão de atender pacientes com COVID-19 nas mais diversas situações como médico, desenvolvido vários trabalhos científicos clínicos e na Epidemiologia da doença, encampado projetos de atenção à saúde indígena no contexto da pandemia, ensinado sobre a doença, colaborado no desenvolvimento do diagnóstico molecular (pioneiro no interior de Pernambuco!), participado de aspectos da gestão em saúde no enfrentamento a essa crise sanitária e tenho estudado muito. Nesse processo, adoeci da COVID-19 e transmiti aos meus familiares. Deu medo, mas não entramos em pânico.

Na minha opinião, não se faz um bom piloto de avião de quem tem pânico de altura. Também não se faz um bom profissional de saúde de quem tem pânico de doença. Medo, sim, é natural. O medo é nosso sistema de proteção evolutivo contra situações de perigo. Mas quando o medo impede que se faça o que precisa ser feito para salvar outras vidas, aí surge o pânico. E o pânico impede a atividade profissional adequada. Mesmo temerosos, nós profissionais de saúde seguimos nossas ações assistenciais guiados pelo senso de dever comum à maior parte. Afinal, acordar para trabalhar atendendo pessoas doentes é o dia seguinte do profissional de saúde após uma noite ruim, uma catástrofe natural, uma invasão zumbi ou o início de uma pandemia.

De todas as atividades que eu tenho feito, sem sombra de dúvidas a que considero mais importante é ensinar. Quando eu ensino estudantes, eu sinto multiplicar as possibilidades de influenciar a vidas das pessoas nas mãos de cada um dos profissionais que ajudo a formar. A Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF, instituição em que ensino e também atuo no combate ao COVID, por conseguinte, tem como principal função não apenas gerar conhecimento através do desenvolvimento científico mas também espalhar esse conhecimento nas suas atividades de ensino em graduação e pós-graduação. De fato, a UNIVASF não parou na pandemia. Na UNIVASF tenho a honra de presidir a Comissão que atua no enfretamento à pandemia, além de manter minhas atividades de professor, de pesquisador e de médico preceptor. Outros tantos servidores e estudantes da UNIVASF também enfrentam a pandemia produzindo EPI, no diagnóstico molecular, na assistência em saúde mental, no desenvolvimento de tecnologias inovadoras, em aulas, em pesquisas e nos afazeres administrativos que mantêm a roda girando e as ações em movimento.

Mas o Curso de Medicina, localizado na minha querida Petrolina, só está funcionando plenamente para alunos na reta final, durante estágio obrigatório na modalidade de Internato que ocorre nos dois últimos anos. A despeito dos professores e técnicos do Colegiado de Medicina, de que faço parte, estarem mantendo aulas remotas, é impossível ensinar Medicina sem práticas presenciais. Entretanto, os cursos da área de saúde na UNIVASF estão impedidos por resoluções internas de desenvolver atividades presenciais fora do Internato. Tais proibições colocam no mesmo balaio os cursos de saúde e todos os demais cursos de graduação, das mais diversas áreas que vão de engenharia a artes. Com todo o respeito às opiniões contrárias, no contexto de uma pandemia sem precedentes, travar cursos de saúde não me parece estratégico.

A verdade é que a aceleração da vacinação nos reforça esperança de dias melhores. No entanto, não há garantias desse futuro de céu estrelado. O comportamento inesperado dessa nova doença tem nos ensinado cada vez mais a tolerar o imprevisível. Uma nova linhagem viral, por exemplo, pode rapidamente emergir com resistência às vacinas atualmente disponíveis. O que nos resta é compreender que o estado de emergência pode perdurar por um tempo hoje ainda imprevisível. Como parte da estratégia de enfrentamento, não me parece razoável interromper a formação de profissionais de saúde. Afinal, o nosso curso de Medicina tem duração mínima de seis anos, fora as subsequentes residências para especializar os médicos generalistas e que podem estender a 15 anos de formação médica. A COVID-19, mais que nunca, nos ensina a importância de profissionais de saúde qualificados na linha de frente!

Claro que isso traz medo. O medo de alunos se infectarem. O medo de professores e funcionários infectarem. Novamente, o medo que serve a impulsionar medidas protetoras aos estudantes e professores não deve gerar o pânico que impede a formação de novos profissionais tão necessários ao enfrentamento desta crise sanitária. Assim como para ensinar a pilotar avião vai existir o risco de queda de uma grande altura, para aprender Medicina vai haver o risco de lidar com doenças.

Esse risco é conhecido dos professores, os quais no caso do nosso Colegiado de Medicina são profissionais de saúde, em sua maioria atuando assistencialmente em paralelo às suas atividades de ensino. Também o medo é reconhecido pelos alunos. Ainda assim, o senso de dever tem falado mais alto. Os estudantes de Medicina da UNIVASF têm se mobilizado em massa ao longo de toda esta pandemia. Foi a partir deles que surgiu a demanda da formatura precoce dos estudantes que já haviam completado mais de 75% de sua formação. Também a partir do interesse deles conseguimos retomar as atividades do Internato. E, novamente a partir da manifestação deles, surgiu a demanda da retomada de atividades práticas em todos os períodos do Curso de Medicina. Os professores e técnicos aderiram massivamente e já providenciaram disciplinas totalmente reformuladas, a fim de assegurar o máximo possível de segurança durante as aulas práticas.

Também a reitoria da UNIVASF, os coordenadores do Curso de Medicina, a comissão de enfrentamento ao COVID na UNIVASF e a própria representação estudantil têm se mobilizado, a fim de assegurar aquisição de EPI adequado e na adaptação dos cenários de prática. De forma importante, também buscando o apoio da Prefeitura de Petrolina para vacinação de todos os estudantes de Medicina. De fato, a Prefeitura de Petrolina tem se mostrado sensível a essas demandas, inclusive já tendo vacinado nossos estudantes no Internato.

No entanto, a despeito da movimentação cuidadosa e proativa de tantos atores legítimos, a Câmara de Ensino da UNIVASF negou por duas vezes que se retomassem as aulas práticas do Curso de Medicina, no sistema proposto de ensino híbrido. Com isso, ainda segue travada a retomada do ensino adequado em Medicina na UNIVASF, sob risco de pararmos de formar novos médicos em breve, talvez quando esses venham a ser ainda mais necessários para nossa sociedade. Por mais honestos os anseios dos servidores que impediram a retomada das atividades práticas do Curso de Medicina, me parece uma atitude intempestiva, que desconsiderou a autonomia do nosso Colegiado para uma definição tão importante às pessoas que temos dever de assistir.

Há ainda a possibilidade de recorrer administrativamente dentro da UNIVASF para que haja a retomada das atividades práticas do Curso de Medicina, embora a janela de tempo dessa ação seja curta. Não cabe a mim fazer qualquer juízo de valor sobre opiniões divergentes de quem quer que seja, respeito a todos e acredito que todos estejam imbuídos de intenções gloriosas mesmo na discordância.

Não devo, no entanto, me furtar de deixar claro aos meus estudantes, assim como o fiz aos meus filhos no início da pandemia, que compreendo e apoio o senso de dever que já estão demonstrando. São muitos e belos os exemplos de egressos que encontro nos dias mais duros dessa batalha que é a assistência à saúde das pessoas, como jovens pilotos habilidosos em noites de turbulência. Mais importante, muito me orgulhará trabalhar ombro a ombro com eles nas trincheiras cada vez mais profundas da luta contra a COVID-19. Eu, cada vez mais, me sinto honrado de fazer parte da UNIVASF, cumprindo nosso papel social no Sertão Nordestino com dedicação e competência. Os nossos egressos são, sem dúvida, nossos mais valiosos ativos. Como tenho dito, muitos querem heróis nos profissionais de saúde. Eu só quero profissionais obsessivamente bem formados e com compromisso com as pessoas de que cuidam. Graças a Deus, estes últimos não têm nos faltado!

Anderson Armstrong/Médico cardiologista e Professor adjunto da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf)

Artigo do leitor: “Por novos médicos no Vale do São Francisco para ajudar no combate à pandemia”

  1. Árvore disse:

    Ok, Sr. Médico. Já foi possível entender sua visão política há algumas postagens. 11% com segunda dose, 2 mil mortes na média de sete dias, não voltamos à “normalidade”.

  2. Eugênio disse:

    Tem que avisar pro médico Anderson Armstrong que o BOLSONARO expulsou NOVE MIL médicos CUBANOS… tem que cobrar ao BOLSONARO o custo dessas IRRESPONSABILIDADES e CRIMES.

    1. Costa disse:

      Expulsou foi? Os escravos do PT e os demônios dos irmãos Castro, um já foi, falta o outro!
      Muitos desqualificados que sequer eram formados, raras exceções se salvavam. Isso que é loucura e demência num nível hard!

  3. JAILSON disse:

    Existem coisas que não entendo, querem mais médicos na região e não fazem sua parte! O colegiado de medicina ,segundo fontes está boicotando para que os alunos não sejam vacinados, muitos já estão fazendo aulas práticas em locais cheios ou próximos de pacientes com COVID! Dessa forma como teremos futuros médicos?. Por conta de pensamentos políticos, apoiadores desse desgoverno, querem que nossos estudantes sirvam de cobaia para uma pandemia que pra muitos é fake, mas que sabe de verdade que existe e mata! “Vacina já, para os estudantes de Medicina da univasf”

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