Neste artigo enviado ao Blog, dois profissionais da educação do Vale do São Francisco, o Professor Antonio Marcos da Conceição Uchoa e a Professora Dra. Ivânia Freitas, fazem um contraponto ao artigo do secretário municipal de Educação de Petrolina, Professor Plínio Amorim, que foi publicado no dia 26 de janeiro. Segundo o secretário, o aumento das injustiças sociais tem uma relação direta com as restrições impostas ao setor educacional, e que pode se agravar ainda mais. Os dois professores sugerem um novo olhar sobre o tema.
Confiram:
O artigo “Educação na pandemia: a condenação do futuro” escrito pelo Secretário de Educação do Município de Petrolina-PE, Professor Plínio Amorim, publicado no Blog do Carlos Britto, em 26 de janeiro de 2021, chamou-nos a atenção, inicialmente, por ir de encontro, em alguns aspectos, às informações divulgadas pelos órgãos sanitários quanto ao avanço da Covid-19 desde os últimos dias do ano passado. A chamada segunda onda mundial do vírus tem assustado as autoridades de saúde por sua forma de contágio ser maior. Por essa razão, países que já tinham controlado suas taxas de contaminação e haviam reaberto as escolas seguindo os protocolos das organizações sanitárias, voltaram a fechá-las diante do crescimento do número de infectados e de mortos.
É de estranhar que no grave cenário do Brasil, com mais de 220 mil vidas perdidas, com cerca de 1.386 óbitos diários, o Secretário Municipal defenda o retorno (mesmo que gradativo) das aulas presenciais, sob o argumento do uso de protocolos sanitários. O artigo nos provoca inúmeras reflexões, que vão desde a ausência de visão de contexto (tanto da realidade concreta das escolas, sua dinâmica pedagógica e de seus sujeitos), a argumentações que caminham na direção de responsabilizar a educação e os professores pela “condenação do futuro” dos estudantes. Por estas razões, estabelecemos um diálogo com os argumentos do artigo do Secretário para explicitar as bases do “dito e não dito” em tal discurso.
Historicamente, o discurso hegemônico busca desviar a atenção da sociedade sobre as desigualdades sociais como sendo fruto de um modo de sociabilidade que favorece que uma pequena parcela da sociedade mundial acumule grandes fortunas, enquanto milhões de pessoas passam fome e outros milhões vivem com o básico. É no sentido de desviar o olhar sobre esse quadro desigual naturalizado, que o discurso das classes dominantes não se cansa de afirmar chavões de que a educação tem o “poder” de resolver as “injustiças sociais”, como se tais injustiças fossem geradas ou resolvidas dentro da escola.
Sabemos da importância da Educação para o desenvolvimento pleno dos sujeitos e isso inclui a elevação de suas capacidades econômicas, uma vez que favorece acessar empregos mais qualificados e melhor remunerados. Contudo, a educação só atua na diminuição das injustiças e no combate às desigualdades, se junto às suas políticas são agregadas outras políticas no âmbito da geração de empregos e distribuição de renda, saúde, assistência social, políticas de acesso à cultura, ao lazer, às práticas desportivas, aos meios de informação e comunicação, apenas como exemplos.
Em um país de severas desigualdades como o Brasil, chegar à escola e nela permanecer já é um desafio. Os que nela chegam e ficam, enfrentam precárias condições estruturais que afetam diretamente suas aprendizagens e, mesmo quando em alguns casos, as escolas sejam dotadas de um certa infraestrutura, os estudantes enfrentam os limites do ensino padronizado, das práticas pedagógicas e de gestão que não os enxergam nas suas situações de desigualdades e diferenças, além de professores desanimados com o alto controle de suas práticas cada dia menos criativas e felizes, diante do modelo empresarial imposto às escolas, no qual a atual Base Nacional Comum Curricular é carro chefe. Tudo em nome de uma visão de qualidade de educação que pouco se importa com as injustiças sociais, mas que se volta exclusivamente para produzir indicadores que nada ou muito pouco dizem sobre o que, de verdade, interessa à educação.
Por essa razão, é “mais comum na rede pública encontrar alunos com atraso no desenvolvimento das competências da sua idade e ano de escolaridade”. De fato, como disse um “velho sábio”, numa sociedade desigual e dividida em classes, marcada pelas injustiças sociais, a educação (ou seja, a escola) carrega em seu formato, processos e resultados, os traços dessa sociedade. Portanto, se queremos uma sociedade sem injustiças, teremos que questionar e mudar os elementos dessa sociedade que dão origem às injustiças e certamente, essa origem não está na escola em si.
O início da Pandemia da Covid-19 desvelou ainda mais uma realidade cruel na qual as escolas públicas brasileiras estão imersas, as das precárias condições materiais e objetivas de funcionamento, de problemas relacionados à formação docente, além de outros tantos que desafiam a educação. Contudo, mesmo diante de todos os desafios postos não é possível afirmar que “pouca coisa de produtivo tem acontecido”.
Os professores, especialmente, em todos os cantos do país, têm se desdobrado para adquirir os próprios equipamentos tecnológicos, fazer cursos on-line, vestir-se de personagens para tornar as aulas mais atraentes, ligar diretamente para os estudantes. Há pesquisas que apontam o professor como o único sujeito, muitas vezes, que ainda mantém e faz questão de manter contato quase diário com os estudantes. A racionalidade que sustenta o discurso da pouca produtividade é a lógica empresarial, da eficiência e eficácia que põe as escolas sob uma forma de gerencialismo, que fere os próprios princípios de acesso e permanência na escola pública.
Bares, restaurantes e shoppings que voltaram a funcionar nesse período, o fazem por diversas razões, sobretudo, via apelo do discurso do mercado de que a economia vai quebrar se estes segmentos se mantiverem parados até o fim da ameaça pandêmica. Todos sabemos que esse discurso é apenas uma das muitas cortinas de fumaça criada pelo governo federal, que se aproveita dos efeitos que a Pandemia inevitavelmente deixa em todos os setores (mundo afora), para tirar do foco a ausência de uma política econômica capaz de manter empregos e empresas e a total incapacidade do Ministério da Saúde desenvolver um plano de ação de combate à Pandemia, como têm feito outros países (nos dois setores em questão).
Mas, a comparação do Secretário de Educação, “bares e restaurantes funcionam” e escolas com aulas presenciais não funcionam é, no mínimo, trágica! Primeiro, porque como educador, ele deve saber o que é a dinâmica de uma escola, como as crianças, adolescentes e jovens se relacionam no dia a dia; deve saber o que é o recreio e sabe como são as escolas: o tamanho das salas, as condições de banheiros, de cozinha, de “refeitório”. Ele deve saber também, que a comida nas escolas é feita por gente, os professores e professoras (a maioria de mulheres que engravidam) são gente, os vigilantes da escola também são gente. Todos, incluindo os estudantes, vêm e vão para suas casas, entram em transportes, lidam com outras pessoas (incluindo idosas) e, voltam para a escola, carregando com elas, a possibilidade de morrerem ou levarem a morte para alguém. E isso não é exagero nosso, visto que a ciência ainda não tem todos os elementos para compreender os limites e possibilidades de alcance desse vírus, visto que ele tem apresentado mutações.
A afirmação do Secretário nos chama atenção ainda, porque ele deve saber que bares e restaurantes se frequenta por opção, escola não. Os bares e restaurantes funcionam porque o seu dono está focado na renda e não são responsáveis pelas vidas que passam por lá e o que vai acontecer com elas (já que vão por livre vontade). Mas, como sinalizamos anteriormente, escola não é empresa, ela não tem lucros a gerar, ela tem pessoas para cuidar, educar e vidas a preservar.
O recente relatório da UNESCO ressalta a importância da volta das escolas, entendendo-as como espaços insubstituíveis para o processo formativo das crianças, adolescentes e jovens. Para isso, os professores e professoras devem estar na linha de frente do plano de imunização. Mas, no Brasil, o governo federal não deu prioridade aos profissionais da educação na primeira fase de vacinação. Ou seja, o argumento de voltar às aulas presenciais trazidos pela UNESCO vale para países que valorizam a educação e respeitam os professores, o que não tem sido o caso do Brasil. Da mesma forma, o Plano para imunização do município de Petrolina só prevê a categoria dos trabalhadores da educação em sua terceira fase de vacinação. Sob qual lógica seria racional reiniciar as atividades letivas presenciais, mesmo que progressivamente, e colocar os profissionais da educação em uma fila na qual não se sabe quando chegará a terceira fase? E os estudantes e funcionários seriam vacinados quando? Suas vidas não importam?
O apelo à razão de que “não podemos, agora, paralisar o futuro”, não é só injusto, é também perverso. Primeiro, porque põe sob a responsabilidade da escola e de seus profissionais o suposto “futuro”, que não está ameaçado pela escola, pois a Pandemia não é um fator sob o controle da escola ou de seus profissionais, mas das autoridades governamentais que devem agir na produção de pesquisas, vacinas, medidas de isolamento social e com políticas de saúde e econômicas que garantam o elemento indispensável para viver o suposto “futuro”, estar vivo!
Segundo, porque ignora as reais condições objetivas de funcionamento das escolas públicas, especialmente as escolas do campo, que vivem descasos históricos com as questões básicas, sobretudo, de ordem estrutural. Terceiro, porque desresponsabiliza o poder público de agir no enfrentamento das desigualdades sociais que possibilitam a ampliação da riqueza de poucos e o aumento da pobreza de muitos, mesmo durante a Pandemia, o que não só “paralisa o futuro”, mas o nega objetiva e subjetivamente aos filhos e filhas da classe trabalhadora.
Daí, vale lembrar que a sociedade vive, na Pandemia, o choque do impedimento das aulas presenciais e isso de algum modo, deu visibilidade à importância da escola. Contudo, a educação pública brasileira não foi parada pela Pandemia, a escola sim. A Educação vem sendo paralisada com medidas severas, especialmente, depois que a Emenda Constitucional 95/2016 congelou os recursos para os próximos 20 anos. Soma-se a isso, o significado real da perda dos royalties do pré-sal, que o Plano Nacional de Educação previu como fundamental para a garantia da qualidade da educação. Além do mais, a sociedade precisa saber que os últimos cinco anos acentuaram um processo de cortes de várias políticas na educação básica e superior, que permitiriam que o “futuro” das gerações atuais fosse melhor do que o nosso. Essa é a verdadeira “condenação do futuro”, um país em que o Estado não se responsabiliza nem com a educação e nem com a vida de seu povo!
Vale dizer também que, se não se pode “paralisar o futuro”, igualmente não se pode reduzi-lo a formatos precários de educação e que ignoram os contextos concretos da vida e reduz tudo a números, estatísticas, indicadores. Nesse sentido, é bom destacar que voltar às aulas presenciais só faz sentido se a escola puder ser a escola de fato: lugar do encontro, da acolhida, da vida pulsante das crianças e adolescentes passeando pelos corredores, construindo trabalhos em grupo, aprendendo a serem pessoas melhores (no presente e para o “futuro”); que ela possa ser o lugar das relações de convivência que se desdobram no afeto demonstrado pelos abraços nos professores/as, pela partilha do lanche com os colegas e em tantas outras situações.
Compreendemos que “chegou o momento de a humanidade provar sua inteligência e assumir compromissos racionais com a segurança e a evolução da sociedade”, de fato. Para isso, necessitamos em um primeiro plano, firmar o compromisso de não negar a ciência e seus alertas sobre o risco que corremos e sobre a saída real que temos, a vacina! Se ainda não conseguimos vencer essa doença, isso se deve a um visível retrocesso na inteligência, fruto do negacionismo, do fundamentalismo religioso e da conveniência política dos que preferem se manter em seus postos de poder e paralisam sua inteligência nos discursos repetitivos pouco sensíveis com os dilemas reais que a população enfrenta.
Um segundo compromisso (de bom uso dessa inteligência), seria o de nível planetário, o de ter a vida como o maior bem e nada deveria vir como prioridade, nem bares, nem restaurantes, nem escolas funcionando.
Um terceiro compromisso está a nível nacional. É urgente destituir o ícone do movimento antivacina do país, o presidente da república! Ele tem sido a marca do atraso, não apenas da volta às aulas presenciais, mas da democracia, e isso paralisa o futuro de muitas gerações!
E, um quarto compromisso, seria combater com veemência o discurso da educação na lógica que fortalece o capital e a afasta da sua principal função – educar pessoas desenvolvendo suas capacidades mais elevadas para que possam agir na mudança desse modelo social que nos impede de sonhar com o futuro.
Por fim, faz-se necessário compreender que o artigo do Secretário Municipal de Educação de Petrolina, apesar de trazer em alguns momentos frases de efeito, aponta para um discurso no qual se manifesta claramente a responsabilização da escola e de seus sujeitos por questões que estão no âmbito da capacidade (e competência) do Estado resolver, pois é dele a tarefa do cuidado com o bem público, dentre eles, a vida de cada cidadão. Talvez, por isso, falte no artigo do Secretário palavras como “governo”, “Estado”, “município” ou simplesmente “nós”, e assim “o dito e o não dito” se aproximam mais dos discursos economistas que, evitando trazer pautas estruturantes para o diálogo, reiteram a lógica de culpabilização das escolas e seus profissionais, num claro manifesto de isenção dos que têm a responsabilidade pelos dilemas vividos na educação pública, bem como, pelos efeitos cruéis da Pandemia no presente de nossas crianças e na abreviação de seu futuro. A proposição de voltar às aulas nas atuais condições e com esses argumentos trazidos no artigo pelo secretário reflete, sem dúvida, uma “intransferível marca negativa” do compromisso das autoridades públicas neste momento pandêmico, com essa e com as próximas gerações.
Profa. Dra. Ivânia Freitas e Prof. Me. Marcos Uchôa (doutorando em Educação)
Os professores não querem mais trabalhar.Querem ficar em casa só recebendo salário e fazendo excursões para as cidades litorâneas.Só vão voltar trabalhar se cortarem o salário.
Parabéns para os professores, deram uma aula para o secretário, que deveria se envergonhar do que escreveu, depois dessa resposta. Por isso que os cargos devem ser ocupados por pessoas qualificadas… senão passa vergonha mesmo.
Representam preguiçosos, não os professores.
Parabéns pelo artigo. Representa muito bem o sentimento de toda a categoria profissional.